2012.09.07—2012.12.09
Pássaros do Paraíso
Hugo Canoilas

Passáros do Paraíso

Texto de Hugo Canoilas, Setembro 2012

Cá fora. Um jardim. Dos poucos Jardins de São Paulo. Vêm crianças e cães acompanhados de humanos adultos. A casa é robusta. As paredes são de taipa de pilão; terra transformada em pedra, coberta por sucessivas camadas de cal branca.

Entramos na sombra serena do alpendre. À esquerda, o escritório que servia aqueles que vinham de fora recebe agora aqueles que tomam conta da casa.

No lado oposto, a capela. Uma forma em T evocativa da cruz, mas também da forma-pintura do artista alemão Blinky Palermo (1943–1977) detém-nos. Mantém-nos à distância permitindo alcançar, com um olhar oblíquo, um conjunto de objectos de cariz religioso.

1. Representação

Entramos na primeira sala, central, alta e silenciosa. A sala está vazia por pouco tempo. Descobrimos sobre nós um conjunto de bandeiras que se movem com a brisa que passa.

As bandeiras, a saber: (colocar referências) têm um valor histórico; Tiveram uma força politica e social e, agora, são tomadas por uma categoria estética (porque elevadas) organizando-se por outros valores – do um em relação ao outro.

2. Morte

À direita, encontramos uma cortina, um pano estendido que divide o espaço diagonalmente. Por entre este verso de uma pintura que é pintura, encontramos a luz natural que passa por uma janela, marcada por uma linha diagonal que trava as portadas desta.

No primeiro espaço desta sala, encontra-se uma rede de viagem guardada (suspensa) por uma moldura de madeira (também ela suspensa), com cimento e tinta – muito pictórica, quase transformando a rede em cama – entre o natural e o artificial, o hoje e o ontem. A rede será sempre o lugar da introspecção brasileira. Um chicote em forma de cobra. O objecto da violência (neste caso sobre o animal) é liberado para uma experiência estética.

Do outro lado da sala, encontramos um homem moribundo, envolto em cores líquidas e psicoedélicas com uma pequena visão (feita a partir de um desenho de Debret). A pintura é realização do estudo de Henrique Bernardelli (1857–1936) Últimos momentos de um Bandeirante, que encontrei no Museu Paulista, na Ipiranga. O estudo marca uma visão humana longe da figura do gigante ou herói, não merecendo, por isso, a encomenda por parte de Taunay (director do Museu nessa época).

O estado da doença é, segundo Nietzsche, o melhor estado para medir o humano, retirando-nos do nosso auto-centrismo e colocando-nos numa posição existencialista, romântica, potenciadora do sublime.

3. Religião

Somos iniciados, ao entrar, por uma cruz vazada em pano.

A cruz repete-se, na cruz sobre a mesa, na cruz suspensa, nos braços estendidos do Menino, em São Sebastião, no cimo do oratório e na Janela, objecto encontrado (evocativo primeiro de Duchamp, mas, num segundo momento, tal como a cruz vazada em pano, evocativo do Museu do Camponês Romeno realizado por uma equipa liderada pelo artista Horia Bernea).

É a janela que marca, com a forma da cruz, o olhar sobre o mundo: um olhar para fora dividido (em quatro, marcando a cruz em nós de forma quase invisível) e um olhar para dentro (reflexivo, de projecção sobre nós).

Os oratórios recebem pequenas figuras que se deixam entrever, colocando-se como receptáculos – valor estendido às restantes figuras que nas suas perturbações da forma (por acidente ou erosão) sustêm essa capacidade de receber as nossas projecções (medos e esperanças).

A televisão, normalmente de valor inverso ao do receptáculo, mostra dois blocos de imagens: O primeiro – uma imagem do rio Tietê perto de Santana do Parnaíba, na qual, sobre um leito de lixo e morte, passam objectos do quotidiano, dejectos que passam numa cadência assustadora sobre as águas cor castanho leite.

Por baixo desta imagem, e de movimento contrário ao movimento das águas (tal como em Pollock – não fixando a imagem numa assumpção proto psicoedélica e, por isso, contra a realidade em que vivemos), aparecem vestígios de relevos em madeira que descrevem os passos do caminho de cruz.

O resultado é um vestígio que aparece e desaparece. Talvez este possa iniciar o visitante a procurar, a projectar, sobre os objectos ali à sua frente, algo de si. 

Regressamos e voltamos a ver a sala da morte noutra perspectiva.

4. Flora

A sala do desenho. A forma receptáculo, forma-linha para tomar forma. Evocação pelas formas naturais recolhidas nos arredores desta casa (canteiros e caçambas), potenciando a percepção do trabalho quase religioso, que nos une num determinado tempo que é próprio ao objecto realizado.

5. Rio

A sala que se repete (na exacta medida da sala de entrada) é dada a ver na plenitude das suas dimensões por um pano pintado que desce como se fosse uma cascata. Esta, como todas as outras pinturas, foi realizada a partir de motivos já dados (já fotografados ou já pintados. Neste caso preciso: algumas fotografias a preto e branco de um livro de que o Joaquim Millan me mostrou e alguns desenhos do Debret que eu descobri na casa do Fernando Marques Penteado). As formas já dadas são formas mortas, constituintes do cliché da pintura. A forma escura pintada (desenho) sobre o tecido serve de grelha, a partir da qual a pintura não pode cair e que me possibilita (obriga) a pintar com um outro grau de liberdade de forma a destruir essa grelha.

Sobre este pano, está um ecrã, com um conjunto de imagens de objectos-texto na paisagem. A voz repete os textos e, noutra língua, ouvimos a tradução do texto (um conjunto de trechos de livros de Walter Benjamin, Mário de Andrade, Waly Salomão, Roberto Piva e Olavo Bilac).

Os textos projectam-se sobre os objectos e estes projectam-se sobre a paisagem, durante uma viagem feita em torno do rio Tietê. Este conjunto múltiplo de projecções funciona como camadas que encontravam sentido num lugar muito específico que englobava factores sociais, políticos, mas também fenomenológicos, de relação com o lugar. Esta acção é, para mim, um braço estendido da Bienal ao interior do Estado. Uma acção não pedagógica, criando uma relação horizontal entre aquele que passa e o objecto encontrado (como se a descoberta o colocasse de imediato com outra predisposição para olhar e ver); sem mediações, sem sinalizar este objecto como arte; na tentativa de cortar com o tempo quotidiano, potenciando a experiência de um outro tempo e um outro olhar, propostos pelo objecto-texto em movimento.

As costas da pintura que desce do tecto é pintura. Neste espaço diagonal que mostra a saída, encontram-se suspensos dois latões com os quais se aplica cal na casa. A forma é evocativa dos objectos que aparecem no vídeo mencionado anteriormente, activando uma memória recente.

No canto, um televisor mostra um bloco de imagens do rio Tietê. A espuma do rio é um misto de coisa bela com coisa terrível e demoníaca. Não é impossível vermos as nuvens de Magritte sobre a paisagem e, ao mesmo tempo, nos sentirmos deslocados, incapazes de fruir, porque sabemos as consequências desta massa informe que se move à nossa frente.  

6. Paisagem

Uma grande paisagem feita a partir de um desenho (Interior de São Paulo, de Debret). Passa a ocupar quase a medida total da parede de fundo da sala. A pintura foi feita na medida máxima do meu estúdio em Viena e este desajuste foi pré-determinado.

À sua frente, jazem os bancos e tamboretes da colecção do Museu; muito bonitos; feitos originalmente sem a utilização de pregos; forçando o nosso corpo a uma postura precisa, correta e baixa. “Nós somos da altura daquilo que vemos e não da nossa altura” (Fernando Pessoa in O livro do desassossego). À sua frente, está um conjunto de reproduções destes bancos feitos com materiais precários recolhidos nas caçambas deste bairro.

A percepção do objecto – a pedagogia deste lugar é feita pela sua experiência, pelo manuseio e utilização dos bancos e, desta forma, aqueles que passam são convidados a ficar mais um pouco em frente à pintura, e assim consigo mesmos.

7. Quotidiano

Os objectos são colocados por tipologias, lado a lado – um exercício de diferença e repetição, de evolução da forma entre o mais primitivo cortado à faca ou modelado sem roda e a sua melhoria com o passar dos tempos.

O brilho negro do televisor contrasta com a opacidade rugosa da madeira do pilão. No televisor, passam um conjunto de imagens de uma casa bandeirista em utilização, na Chácara do Rosário. Encontramos diferentes tipos de mobiliário, um forno a lenha, um forno a gás, um pilão, um computador, uma antena parabólica, carros e cães à porta.

Uma placa suspensa recebe um conjunto de cachimbos e flauta – da boca para o espírito.

No lado oposto, a tradução livre do livro de Georges Perec (La vie mode d’emploi):

ON EST PRIÉ DE FERMER LES YEUX

ON EST PRIÉ DE FERMER UN OEIL

8. Livros

Cá fora de novo, descobrimos o jardim. Um banco corrido e uma placa de cor castanha (chocolate quente, para ser rigoroso, com a marca de tinta, mas mais próximo da Terra Siena, de facto). Somos convidados a estar, pelo som dos pássaros e dos abacates que caem e que os alimentam.

A placa contém os livros que prepararam este trabalho (O destino das imagens, de Jacques Rancière; O turista aprendiz, de Mário de Andrade; Me segura qu’eu vou dar um troço e Gigolô de bibelôs, de Waly Salomão; a versão inglesa de Tristes tropiques, de Claude Lévi-Strauss; Um estrangeiro na legião, de Roberto Piva; O caçador de esmeraldas, de Olavo Bilac; e Francis Bacon: A lógica da sensação, de Gilles Deleuze).

Os livros indiciam a preparação da viagem feita a partir de uma história de viagens feitas ao interior do Brasil, da antropologia à arte moderna até à escrita do Pós-tropicalismo, que funciona como viagem em si – funcionando como estrato da experiência realizada. 

9. Sala de leitura

Dois vídeos passam num televisor ladeado por um quadrado que descobre a taipa e uma placa no canto oposto que explica a sua realização. O primeiro vídeo é uma colagem-viagem, que mostra o agora das localidades visitadas (Santana do Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Itú, Salto, Porto Feliz, Tietê, Embú das Artes, Cotia e Caparicuíba), numa viagem feita de trás para a frente e colando textos sobre a imagem. É o texto que determina aquilo que vemos, sem escamotear a imagem como receptor daquele que vê.

O filme acaba com a imagem do historiador Dalton Sala a fotografar uma casa bandeirista sem que nenhuma seja entrevista.

Um segundo vídeo mostra o processo de realização da pintura da sala do rio. Tenho uma carapaça de tartaruga nas costas e ouve-se Oskar Werner cantando canções vienenses, estabelecendo relação entre o trágico e o cómico, entre o conhecido – tomado como natural, e o exótico.

A tartaruga evoca ainda o universo de Monteiro Lobato que dá nome ao local onde se encontra a Casa.

Pássaros do Paraíso, (vista da entrada principal), 2012 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Representação, 2012. Bandeiras (século XVII a XIX) da colecção do Museu Casa do Bandeirante suspensas a partir do tecto. 196 x 134 cm (cada) 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Morte, 2012. Cama de rede de viagem montada em estrutura de madeira encontrada, chicote suspenso (ambos da colecção do Museu Casa do Bandeirante), peça de algodão pintada (340 x 540 cm 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Últimos momentos de um Bandeirante, 2012. A partir do estudo de Henrique Bernardelli com o mesmo nome, nunca realizado como pintura. Tinta sobre algodão. 340 x 540 cm 
Pássaros do Paraíso (vista da entrada). Religião, 2012 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Religião, 2012. Da colecção e da esquerda para a direita: Sebastião, cruz (suspensa), Menino Jesus, crucifixo, Divino Espírito Santo, suporte de vela, oratório com Nossa Senhora da Dor, recipiente de água benta, oratório com S. Bento, Santo António, Cristo, Menino Jesus, Santo não identificado. Objectos introduzidos: janela pintada (em homenagem, juntamente com a tela cortada, ao Museu do Camponês Romeno de Horia Bernea), bloco de imagens (formato vídeo NTSC, cor, 15', loop) 
Pássaros do Paraíso. Casa dos Milagres, (stills de vídeo), 2012. Vídeo HD mono canal, NTSC (1080p), 16:9, cor, som estéreo, loop. 5'24'' (duração) 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Flora, 2012. Cestaria da colecção do Museu Casa do Bandeirante, materiais orgânicos encontrados nos arredores do museu 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Rio, 2012. Barco esculpido da colecção do Museu Casa do Bandeirante, tinta sobre tela (700 x 640 cm), vídeo relatando as inserções de objectos-texto nas margens do rio Tietê, vídeo HD mono canal (NTSC 1080p, 16:9, cor, som estéreo, loop, 7'10'') 
Pássaros do Paraíso. Na Margem, (stills de vídeo), 2012. Vídeo HD mono canal, NTSC (1080p), 16:9, cor, som estéreo, loop. 7'43'' (duração) 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Paisagem, 2012. Pintura realizada a partir do desenho "Interior de São Paulo", de Debret (1768-1848), bancos da colecção do Museu Casa do Bandeirante, reprodução dos bancos para uso feita com materiais encontrados 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Quotidiano, 2012. Objectos da colecção do Museu Casa do Bandeirante: tábua de mdf suspensa com flauta e cachimbos, tacho de metal, chocolateira, cerâmicas, grelhador (suspenso), pilões de madeira esculpidos 
Pássaros do Paraíso. Quotidiano, (stills de vídeo), 2012 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Quotidiano, 2012. Objectos da colecção do Museu Casa do Bandeirante: tábua de mdf suspensa com "on est prié de fermer un oeil", "on est prié de fermer les yeux", de "La vie mode d'emploi", de Georges Perec, traduzido livremente para português 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Rio, 2012. Bloco de imagens do rio Tietê, banco feito com material encontrado 
Pássaros do Paraíso. Rio, (still de vídeo), 2012 
Pássaros do Paraíso (vista da instalação). Livros, 2012. Colecção de livros montados em placa de mdf sob o alpendre da Casa. Lista dos Livros: "O destino das imagens", de Jacques Rancière; "O turista aprendiz", de Mário de Andrade; "Me segura qu'eu vou dar um troço" e "Gigolô de bibelôs", de Waly Salomão; "Tristes tropiques", de Claude Lévi-Strauss; "Um estrangeiro na legião", de Roberto Piva; "O caçador de esmeraldas", de Olavo Bilac; e "Francis Bacon: A lógica da sensação", de Gilles Deleuze 
Pássaros do Paraíso. Colagem-viagem, (stills de vídeo), 2012 
Pássaros do Paraíso. Oskar, (stills de vídeo), 2012