2021.09.24—2021.11.13
Lanhaslândia (Expandida)
Fernando Lanhas
Miguel von Hafe Pérez (curadoria)

Depois de inicialmente apresentada na Galeria Quadrado Azul no Porto em 2020, apresenta-se agora a versão da exposição Lanhaslândia (expandida), com a inclusão de peças novas que apontam a possibilidade de aproximação a um universo tão complexo quanto único. 

De mistério, efectivamente, se trata. É tal o imbricado de sistemas, de conjuntos, de teses e antíteses, de simples aforismos e de elaborados teoremas, de curiosidades, de interesses, de paixões que se enovelam e se desfiam em Fernando Lanhas, que o chão pisado é fluido, de mercúrio, e o caminho para a frente recoberto de véus, uns sobre os outros, sempre sobre outros.

Fernando Guedes

Há artistas que demarcam um território criativo tão singular que dificilmente se deixam posicionar no fluxo contínuo da história da arte.

Fernando Lanhas (Porto, 1923 – 2012) será sempre mencionado como percursor do abstracionismo em Portugal, mas é provável que tal etiqueta acabe por ser contraproducente na informada receção da magnitude projetual dos seus desígnios artísticos. 

A dimensão sísmica de réplicas continuadas é aquilo que melhor define o território Lanhas: uma obra que não se vincula exclusivamente a um tempo determinado, antes uma cartografia difusa, avassaladora e atuante do exercício constante da curiosidade estética e científica.

A sua obra é presente contínuo, é exemplo erigido a partir de uma idiossincrática abertura ao desconhecido. Arquitetura, cosmologia, astronomia, arqueologia, museologia, poesia e arte não são mais do que saberes-constelações em mutante interconexão que um cérebro e um corpo, em determinada altura, souberam interpretar como fonte de infinitas interrogações, tanto na claridade racional, como na especulação quase xamânica.

O Lanhas que toca, mede, mapeia e divulga. O Lanhas que levita na ação poética, no escrutínio plástico, na densidade quase minimal da palavra precisa, da pintura elementar, rigorosa e modernamente universal.

Lanhaslândia: um país sem fronteiras, que tal como o seu fundador tem a capacidade de em sonho levitar com a gravidade profunda de um saber-outro que nos desarma e deixa em contínuo sobressalto.

Esta exposição não é mais do que um apontamento indexical dessa desterritorialização da expectável convencionalidade do fazer artístico.

 Entre os seus magníficos estilhaços contam-se:

- anedotas publicadas no Primeiro de Janeiro entre 1946 e 1950, cuidadosamente recortadas e guardadas pelo seu autor (na altura assinando com o pseudónimo Clemente); 

- uma fotografia ampliada de um conjunto de centenas de slides que documentam viagens de estudo e momentos de descoberta num território que aquele olhar interpretava como ninguém. Nela, imponente e telúrico, Lanhas olha a imensidão granítica da paisagem com a confiança de quem sabe pertencer a um território; 

- desenhos inéditos, aqui mostrados por cortesia da família do artista;

- duas pinturas, excecionais, datadas de 1949 e 1960. A geometria de cores planas e matéricas e as linhas sabiamente dispostas traduzem um exercício de universalidade intemporal, como se pudessem ter sido criadas hoje ou há mais de dez mil anos;

- um sonho: transcrições que o artista efetuava dos seus estados oníricos, onde o mundo se virava do avesso num magma que cruza o humor, o visionarismo, a estupefação, o absurdo e até a sexualidade; 

- seixos pintados, numa intervenção sem paralelo no contexto da aproximação da arte à natureza pela sua desarmante simplicidade e eficácia estética;

- mapas (de grandezas e naturezas distintas);

- um desconcertante projeto de um dispositivo fotográfico aéreo;

- apresentações de projetos de arquitectura;

- dois fósseis (graptólitos) descobertos em 1943 que evidenciam sinais verdadeiramente premonitórios e ecoantes de uma natureza abstrata da pintura por vir.

Lanhaslândia é, assim, a incompletude assumida de uma pergunta sempre repetida por Fernando Lanhas: “o que é isto tudo?”.

Miguel von Hafe Pérez, curador da exposição

P.S.: Mostrar, entre os desenhos inéditos agora apresentados, um pequeníssimo desenho de Fernando Lanhas realizado quando tinha cinco anos, é algo que me coloca algumas dúvidas em termos de prática curatorial. Esta é uma questão angustiante quando se trata de trabalhar com autores que já não estão connosco. Mas a minha estupefacção não poderia deixar de ser partilhada com o público em geral. Suavizou a decisão o fato de Lanhas ter inscrito a data do desenho no seu verso e este se encontrar numa pasta com inúmeros outros desenhos inéditos, gentilmente posta à disposição pelo filho do artista. 

Um moinho, nada mais trivial do que isso naquilo que é comum no imaginário infantil. O que é extraordinário é este ser representado a partir da sua parte de trás. Como se a geometria da representação se sobrepusesse ao tema. Premonitório, ou não?