2025.04.25—2025.05.10
História da Forja
Isabel Carvalho (curadoria)

História da Forja:

Uma Coleção de Papéis e Lutas
   

Inauguração: 25 abril | 16h
   
O início desta exposição remonta há um par de anos, a uma curta viagem de carro com o Ulisses que, com urgência, se preocupava em licitar um conjunto de cartazes numa leiloeira online. Desde então, voltamos a conversar sobre cartazes e a coleção que Ulisses, aos poucos, construía – os que ele já tinha e os que ele queria ter – e sobre as suas histórias. Cada cartaz concentra em si – na sua função de fazer parte dos materiais de comunicação, ou posterior documento de registo, e até como obra – um evento artístico: seja ele uma exposição, uma conversa ou algo ainda mais despretensioso, como é o caso de certos artistas, onde me incluo, que simplesmente gostam, a propósito de um qualquer pretexto, de imprimir e de acompanhar o processo associado.
   
Em fevereiro deste ano, Ulisses, retomando as anteriores conversas, endereçou-me o convite para o ajudar a organizar uma exposição com uma seleção de cartazes da sua coleção, com inauguração marcada para o dia 25 de abril. Combinámos um encontro na galeria para começar o projeto. Logo ao entrar, deparei-me com uma mistura algo caótica de papéis, de diferentes tamanhos, dispostos pelo espaço, muitos deles repetidos (em série, como lhes é próprio). Em confronto com estas existências reais, percebi que tinha imaginado uma coleção diferente – porventura, volumosa, consistente e, sobretudo, mais bem organizada. Uma coleção com todo o aparato de identificação e classificação arquivista, e com um ou mais eixos temáticos e grupos autorais que a sustentasse; assim como com toda a parafernália de proteção: bolsas, etiquetas, papéis acid free, etc. Não era o caso.
   
Após fazermos uma breve seleção, a minha preocupação imediata centrou-se na quantidade de material relevante que teríamos para expor. Suspeitei que fosse insuficiente para se constituir uma mostra. Demorei a perceber que me estava a sobrepor ao que estava diante de mim, com as minhas expectativas – desde logo qualitativas e quantitativas, informadas por coleções “institucionalizadas”. Por consequência, acabava por deslegitimar o valor que Ulisses atribuía ao que já tinha e ao que desejava vir a ter. Ou seja, como se uma coleção mais conversada e desejada do que real, ainda por se fazer, fosse pouco!
   

Pensei ainda no desafio de ocupar o lugar de artista da galeria, sendo Ulisses o meu galerista, e no que seria agora a minha tarefa – não a de realizar uma curadoria, que além do mais nunca fiz, mas de imaginar em conjunto possibilidades de encontro, entre nós e estes papéis impressos. Afinal, ao longo dos muitos anos de trabalho, foram raros os momentos em que nos permitimos aprofundar determinado assunto, tal como o que se segue. Precisávamos de um ponto de partida, uma ideia que ligasse estas “peças”, e o assunto que escolhemos – como se perceberá, por uma coincidência temporal – ajudou-nos a seguir uma narrativa que julgo ter estruturado a exposição.
   
Ora, por estes dias, começou a circular pelos jornais uma notícia sobre a forja de uns quadros de Dominguez Alvarez, um pintor portuense, falecido em meados do século XX, retirados do museu de Serralves onde estavam expostos, por se ter levantado a suspeita de que seriam obras forjadas – não cópias, mas derivações do estilo do desaparecido. Tal episódio está a arreliar o meio artístico, principalmente os meandros do mercado, mas, tanto quanto sei, não tem despertado por aí além o interesse dos demais. Confesso que este sururu necrófago também não me chamaria a atenção, mas percebo que é a ponta de um iceberg a derreter. Estão cerca de 27 graus celsius – são dias quentes, estes de início da Primavera de 2025 – e talvez as alterações climáticas, e a urgência de se falar delas, estejam a influenciar a sensação de que o gelo quebra em torno de certos tópicos quentes que, até agora, repousavam serena e solidamente. O assunto é sério, mas, por alguma razão, quando, a par da seleção de cartazes a expor, eu e Ulisses falámos sobre ele, rimo-nos muito, porventura por motivos distintos. Da minha parte, será o nervosismo suscitado por uma catástrofe iminente ou pelo gozo de ver certas estruturas ruírem?
   
Nutro um carinho especial por falsificadores. Nasci depois do 25 de abril, em plena democracia, mas, por laços familiares com temporários vínculos às artes gráficas e ligações políticas à esquerda radical, cedo soube que falsificadores, em gabinetes exíguos, forjavam assinaturas em certificados e permissões, sendo também hábeis na falsificação praticamente integral de documentos de identificação para quem se via sem outra opção senão votar-se à clandestinidade e ao exílio. Essa prática justificava-se pela sobrevivência e assentava ideologicamente no confronto com a autoridade, com a sua força de vigilância e controlo sobre qualquer forma de dissidência, ou a sua mera suspeita, para se evitarem encarceramentos e práticas disciplinares violentíssimas, tanto físicas como mentais. Reivindicava-se uma justa distribuição de poder e falsificar terá sido uma forma de reconfigurar a possibilidade de existir, num contexto de limitadíssima liberdade.
   
Penso agora neles e no seu trabalho, no gesto treinado rigoroso, na máquina humana ao serviço da oposição, convencidos de estarem a fazer o correcto através do ato subversivo, apesar de criminalizado. Mas imagino – e acho credível – que, a um outro nível para lá da mera sobrevivência, o aproveitamento do treino dos falsificadores poderá ter levado não só à adulteração de documentos com o fim de minar a burocracia de um Estado totalitário, mas a outro tipo de contrafações que poderão ter causado maior indignação ao muito restrito grupo instalado no poder por se situarem já ao nível do “luxo”. Refiro-me ao seu papel na proliferação de cópias de grandes “mestres” da pintura como atitude política no esbatimento da posse do original e na democratização cultural. Logo, um verdadeiro assalto ao que era propriedade de alguns poucos. A falsificação, e a integração da cópia no domínio do comum, contestaria indubitavelmente a ideia de origem, o atestado de originalidade e consequentemente a própria noção de propriedade. Não deixo de imaginar aqui a integração da tecnologia e a possibilidade de não ser só a mão sozinha a animar a proliferação massiva de cópias. Já com o apoio da fotografia e das técnicas de impressão mais refinadas, apareceriam nas oficinas gráficas, de forma encoberta, clandestinamente, obras de arte e até novas obras ao “estilo de”. Reproduções mecânicas e reproduções manuais são distintas, é certo, mas formaram idênticas provocações que poderão, a meu ver, ser aliadas numa mesma atitude de inadiável revolta.
   
Neste mesmo contexto, o das oficinas gráficas, proliferariam igualmente os cartazes políticos, fruto de uma revolução em curso, da imaginação acesa e de uma imensa criatividade. Logo após a revolução, na desordem do momento, a ocupação do espaço público com cartazes suportando politicamente múltiplas vozes e o espaço doméstico com reproduções pictóricas de obras de referência da História da Arte (com as letras maiusculizadas “H” e “A”) alicerçaram uma mesma força de vontade: a de reclamar a descentralização de poder e a sua mais justa distribuição. Por esses tempos, artistas e artesãos, utopicamente indiferenciados, terão trabalhado juntos por uma transformação histórica, que libertasse, enfim, impulsos retidos e preparasse um promissor futuro: o de (vir a) ser e o de (vir a) ter!
   
Desde então, no domínio cultural, abundam práticas de apropriação e de citação, que integraram a cópia – inclusivamente ostentando-a como tal – a par do dito “original”. Paralelamente, tem-se produzido material teórico que sustenta as bases para se questionarem as noções de “originalidade” e de “autoria” (enquanto autoridade), as quais têm vindo a ser colocadas em causa num enquadramento extrativista e colonial. Não me demorarei, porém, neste campo, que seria objeto de extensa reflexão e para o qual deveria recorrer a quem melhor formulou e estabeleceu importantes discursos sobre estes tópicos, mas dirigir-me-ei ao ponto que me parece aqui mais premente: os artistas desde o final do século passado, no contexto português integrado no ocidental, estão completamente à vontade para navegar entre cópias e originais. E, reconhecendo o potencial criativo do uso dos meios de reprodução – não só mecânicos, mas também da mão “reprodutiva” – incorporam-nos no seu trabalho, legitimando práticas antes subversivas.
   
Voltando ao recente escândalo das pinturas forjadas, teremos de pensá-las a partir de outro enquadramento e, por arrasto, com base noutras motivações. Não se trata aqui, pois, da democratização do capital cultural, nem de contestar estruturas de poder, mas antes da sua interferência no mercado – da sua saturação com obras ditas “redescobertas”, introduzidas em leilões como “originais” de artistas já desaparecidos, que rebolariam nas suas campas se o soubessem. Trata-se, assim, de perceber quem está efetivamente a capitalizar com isto. Compreendo que, para os artistas, esta historieta não seja particularmente interessante, sobretudo se assumirem que ficarão sempre para trás e aquém de um sistema que faz circular, em espiral crescente, o capital. Os produtores são, de facto, uma necessidade inicial do mercado, mas, a certa altura, tornam-se descartáveis. O falsificador, embora criminalizado, também o é. Ainda que o seu ofício na forja seja imprescindível – o seu conhecimento profundo do “original” na duplicação ou, com muita criatividade, na criação de obras ao “estilo de” –, não será ele, no seu anonimato, que beneficiará da valorização crescente do seu produto. São, sim, todos os intermediários até chegar ao consumidor relativamente final, que acredita passar a ter em sua posse “originais” de valor.
   
Ocorre-me pensar aqui na estética da tradição clássica, que se estende a outras elaborações iluministas, onde todas as produções da natureza eram consideradas originais e todas as produções humanas, cópias, fruto da representação mimética da natureza. Além disso, nas produções humanas, o falso era o feio e o feio, e, simultaneamente, o de “mau gosto”, era também o injusto. Já o verdadeiro, o belo, equivaleria ao que era justo. Associa-se assim estética e ética no que diz respeito às formas – se justas, equilibradas, se injustas, grotescas. Pela mesma ordem de ideias, os falsificadores de que falei no início – quer pelas condições e circunstâncias, quer pelos seus fins – não executariam falsificações “falsas”, em termos morais, e, tratando-se tecnicamente de um crime, este deveria ser relevado. Na verdade, tais práticas punham em causa, de forma radical, a própria lógica da acumulação capitalista, até às suas raízes, questionando a noção de propriedade e advogando uma ideia de partilha justa. Com vista a resgatar as zonas cinzentas da História da Forja (com irónica ênfase no H e no J maiúsculos), seria necessário contar essa história também com pronomes femininos e neutros. Como em tantos outros contextos históricos, a memória de quem contribuiu de forma ativa e clandestina acaba por ser silenciada – e, com ela, apagam-se as suas lutas e as suas importantes realizações.
   
Já o caso desta outra forja que está na ordem do dia, serve, repito, uma outra causa.
   
Poderia ser, mas não foi sobre julgamentos que nos ocupámos por estes dias, mas de navegar, como amadores, pelas narrativas labirínticas de investigação forense e de acompanhar como estas evoluem e das quais se ocupam já os profissionais da Polícia Judiciária. Diz-se que as denúncias foram feitas através de telefonemas anónimos, que se avançou com interrogatórios, cujas respostas, a seu tempo, serão tornadas públicas. Convido, inclusivamente, o leitor – que será também o visitante da exposição – a investigar um pouco o caso, a apaixonar-se pelas pistas que são dadas, a entregar-se ao jogo das descobertas e sucessivas revelações que este episódio convoca.
   
Entretanto, durante as caminhadas para a galeria durante o processo de elaboração desta exposição, reflito ainda sobre os artistas vivos e de como a forja se tornou num campo concetual extremamente rico ao nível criativo, sendo levado até à paródia. Por outro lado, contra a sua expressa vontade, será um elogio que a sua obra possa ser forjada, a curto ou a longo prazo, vendo-se nisso uma elevação de estatuto? Não será antes um ataque ao seu rendimento? Já sobre os mortos, esta profanação implica e espelha, decididamente, o valor de se ser um artista morto! Com efeito, esta narrativa que nos ocupa, e que constitui um episódio de uma qualquer série policial, não deixa de ser, principalmente, uma espécie de efeito retroativo, que corresponde a um valor transacionado que, como já referido, nunca pertencerá ao artista, nem à sua diminuta economia – esta continuará a fugir-lhe –, mas a uns poucos que constituem um mercado sustentado por princípios necrófilos. Porém, na presente digitalização global, é indiferente que sejam mortos ou vivos, uma vez que os artistas (e não-artistas) e as suas produções são mera informação depositada em bancos de dados, e os seus falsificadores substituídos pelo processamento algorítmico, pela automatização da criação. Coloca-se, assim, novamente a ênfase na redistribuição de poder e na acumulação de riqueza. Digitalmente, qualquer das IAs e das suas corporações constituem uma exploração feroz, difícil de acompanhar.
   
Compete-me terminar com uma breve nota de fundamentação das nossas escolhas. Em primeiro lugar, escolhemos de entre os cartazes que temos os de artistas de que gostamos, alguns com uma forte relação ao material impresso, que integram técnicas de reprodução nos seus trabalhos, e outros que não distinguem cartaz de obra. Escolhemos também artistas que se sabe terem sido forjados. Lamentavelmente, sobre alguns dos cartazes não conseguimos informação suficiente para creditar devidamente a quem pertence, nomeadamente o seu design, mas deixo a suspeita, entretanto confirmada, de que os cartazes mais antigos da galeria foram desenhados pela Arminda Gonçalves, a artista e poeta, esposa de Ulisses, sempre nos bastidores da Quadrado Azul.
   
Assim, esta exposição, e a conversa sobre falsificações a partir dos cartazes, propõe-se como espaço para revisitar histórias – tanto as que se mostram como as que permanecem ocultas. Cabe-nos, então, circular pela galeria como quem colabora na construção de uma coleção ainda por fazer.


Isabel Carvalho
Porto, 10 de abril de 2025.

História da Forja: Uma Coleção de Papéis e Lutas .